Pirataria Digital
Mais do que uma discussão apenas sobre direitos autorais, a pirataria digital tem que ser pensada sob uma perspectiva ampliada de liberdades individuais, modelos de distribuição, acesso universal a informação e produção artística e a própria estrutura da internet.
Tempos atrás acompanhei via Twitter uma discussão sobre pirataria digital. Ela começou assim:
Fazendo uma pesquisa aqui, parece que o grande TEMA TABU da imprensa de tecnologia do Brasil é questionar o “pirataria é ok e inevitável”
— Pedro Burgos (@Burgos) October 30, 2013
E se estendeu por uma infinidade de tuites, discutindo a validade da argumentação. O post de Pedro Burgos me fez voltar a considerar a questão da pirataria de conteúdo digital, um tema que já perdura por décadas. A constatação para mim pareceu claramente válida – se referindo ao tom geral das publicações – apesar de a considerar parcial no que diz respeito a localizar a questão na mídia nacional. Já li diversos artigos em sites como os norte-americanos Gizmodo e Lifehacker mostrando tutoriais sobre como baixar e catalogar músicas, filmes e séries, ou seja, ao invés de meramente discutir o tema da pirataria em âmbito teórico, mostra como cometer a contravenção (porque sim, independentemente da argumentação filosófica, pirataria é um crime).
Como chegamos (ou eu cheguei) aqui
Sempre achei “pirataria” um termo curioso quando aplicado à conteúdos digitais. O mesmo pode-se dizer da expressão “roubar”, “subtrair”, “surrupiar”, etc. Ao contrário dos piratas clássicos, a pirataria digital não trata da expropriação de um bem, mas sim de sua cópia. Nesse escambo, o que o pirateado (empresa de software, músico, gravadora, estúdio) perde não é o bem em si, mas a possibilidade dos frutos da venda do bem. No caso de uma cópia para uso pessoal, o produtor perde uma venda em potencial para esse usuário específico. Por que potencial? Porque pela premissa de que a pirataria digital não envolve custos para o usuário, a consideração sobre a validade ou não de baixar determinado conteúdo é muito mais simples. Baixa-se a priore. Caso não se goste do que foi baixado, basta deletar o arquivo e partir para o próximo. É a lógica que “de graça até injeção na testa”.
Nos anos 80, na minha infância, tinhamos opções restritas para consumir conteúdo audio visual. Havia o cinema, teatro e shows musicais. Para uso doméstico, filmes, séries (McGuiver, Super-Máquina, Trovão Azul, Cosmos…) e músicas vinham pelo ar via ondas de rádio, captadas por tvs e rádios. Era o famoso broadcasting: informacões limitadas (no caso pelas leis da física) para um público potencialmente ilimitado. Poucos canais emissores para muitos receptores.
Não se pagava pelo conteúdo, mas sim pelo objeto: TV, rádio, videogame. O modelo de concessão do conteúdo era baseado numa troca simples: você o recebia livremente e em troca assistia (ou usava o tempo para ir ao banheiro) comerciais pagos por empresas, produtos ou serviços. Como há pouca oferta de canais e uma gigantesca oferta de consumidores atingidos, as organizações donas das concessões públicas podiam cobrar fábulas pela veiculação de comerciais (“podiam” risos).
O modelo de pague-pelo-conteúdo era quase exclusivo da música. Era possível ter uma “vitrola” e comprar um pacote de informação de audio convertido para trilhas analógicas (sulcos) em um disco. Comprava-se um desses numa “loja de discos”, levava-se para casa e à partir dai ouvi-lo potencialmente ad infinitum. O modelo da mídia física era basicamente de um monopólio industrial. Não havia equipamento doméstico capaz de duplicar discos. Se fosse convidado para a festa de um coleguinha de classe e gostasse particularmente do disco dos Saltimbancos, precisaria convencer meus pais que comprassem um para mim. Ou, meu amigo podia me emprestar o disco. Não havia DRM (Gerenciamento de direitos digitais em inglês). Eram tempos mais simples.
O único choque cultural, a única ameaça ao modelo do disco eram as fitas cassete. Elas permitiam copiar o conteúdo dos discos e passaram a vir embarcados nos aparelhos de som 3 em 1 (rádio, disco, cassete). Mas as fitas cassete copiavam o conteúdo com prejuízos sensíveis. A qualidade sonora era inferior e a lógica de gravação linear (ou seja, para avançar da música 1 para a 5 por exemplo era preciso enrolar e desenrolar a bobina de fita magnética). Mas a fita cassete trouxe um benefício em troca: a portabilidade graças aos icônicos Walkmans.
Lembro que em 85 ou 86 um novo aparelho chegou em casa. O video cassete. Foi ele que me propiciou o primeiro encontro com a pirataria. Perto da minha casa havia uma pequena locadora. Para procurar um filme, havia uma série de fichas divididas por gênero, como numa biblioteca antiga. O que havia de particular com essa locadora era que as fitas de video eram piratas. A qualidade era terrivelmente ruim. Fernão Capelo Gaivota parecia um filme de terror. Pouco tempo depois, uma nova locadora abriu perto de casa, essa com vídeos originais, tremendamente superiores em audio e video. Nunca mais voltamos na antiga locadora.
Avançando alguns anos, tive um dos contatos mais significativos da minha vida. Depois de experiências com computadores com telas verdes e unidades de fita (as mesmas fitas cassete), tive minha primeira experiência com um Intel 286, tela colorida, Windows… 3 talvez?
Esse é um ponto curioso. Eu nunca pensava sobre o Windows como algo dissociado da máquina. Não pensava que aquilo era um trabalho intelectual de uma equipe altamente especializada que precisava não só produzir um sistema operacional completo, mas um conjunto de drivers de dispositivo para dar sentido a aquele amontoado de peças. Meu modelo mental alimentado pela lógica de que o que valia era o hardware (o que você chuta) e não o software ( o que você xinga) tinha sido adaptado por analogia do modelo anterior. Na minha experiência, software era livre. Trocávamos disquetes na escola com jogos e programas. Um dos pontos centrais da pirataria digital é que ela é fácil. Salvo por um ou outro disquete que eventualmente falhava no disco 10 de 12 de determinado jogo, a reprodução era perfeita. Nunca senti que estava fazendo algo errado, as ferramentas estavam ali, à disposição. Não havia DRMs para contornar, não havia poréns.
Dai entra a internet. Apesar de ser a parte mais importante da história, é uma história que todos conhecem. A conjunção da tecnologia de compressão do MP3 com o desenvolvimento de tecnologias ponto a ponto como Napster, Audiogalaxy, Limewire e outras criou uma facilidade inédita em baixar músicas via internet com alta qualidade. As conexões cada vez mais rápidas possibilitaram baixar arquivos maiores em menos tempo. O que valia para música, valia para software e vídeo. Os arquivos .torrent aliados a sites como o Piratebay levaram a pirataria digital a sua expressão máxima, a ponto de hoje representarem por volta de 30% do tráfego upstream da internet.
A revolução do compartilhamento na internet tem outras vertentes que a afastam dos modelos anteriores: não é preciso conhecer o sujeito que compartilha o conteúdo. Ao contrário da época da escola onde a pirataria se dava ponto-a-ponto entre um círculo restrito de conhecidos, o círculo passa a ter o tamanho do mundo. A cópia digital praticamente não traz prejuízos sensíveis de qualidade. As compressões de audio e video se tornam cada vez melhores. Os softwares a rigor são cópias 1 para 1.
Lógico que a indústria teve uma reação violenta frente às novas ameaças aos direitos autorais por eles representados. Softwares (como o Napster), sites de download direto (como o Megaupload) e de torrents (como o Isohunt) são frequentemente derrubados por ordens judiciais.
Whac-a-mole
A indústria dos produtores demorou a perceber que caminhava para um novo universo de compartilhamento aparentemente sem volta a curto ou médio prazo. Gigantes mudam de direção mais lentamente. A Microsoft precisou de um choque para perceber o potencial da internet e investir em seu Internet Explorer. Grandes gravadoras resistiram o quanto puderam para perceber a necessidade de readaptar seus modelos de negócio. Indústrias inteiras e outrora poderosas como a Blockbuster não perceberam que seu modelo ruía sob um novo paradigma tecnológico. A lógica estrutural da internet impedia ações concretas para coibir a pirataria. Derrubar um programa como o Napster fazia brotar 5 novos. Sites como o Piratebay, mesmo incessantemente caçados sempre acabam conseguindo se reestabelecer sob outra jurisdição mais frouxa. É uma corrida de gato e rato quase patética. O rato não só quase invariavelmente escapa como se reproduz com velocidade espantosa.
Nesse momento gostaria de retomar algumas premissas:
- A pirataria constitui crime pela quebra de direitos autorais;
- A lógica do compartilhamento digital permite cópias “perfeitas” e infinitas;
- A possibilidade de controle sobre a pirataria é restrita ou a rigor inexistente.
O que me interessa mais sobre a questão da pirataria não é necessariamente a análise local do fenômeno (indivíduo X baixa ilegalmente filme Y). Sob esse aspecto o cenário parece relativamente simples. Colocaria alguns pontos fundamentais, não necessariamente nessa ordem:
- É simples;
- Não parece um crime, ou pelo menos parece um crime sem vítima;
- Por vezes o material pirata é superior ao original. Sem apresentar as restrições de DRM denunciadas por projetos como o Defective by Design a cópia torna possível reprodução em uma maior variedade de dispositivos.
- As complexidades legais do processo de licenciamento em diferentes territórios ou escolhas dos produtores fazem com que muitas vezes conteúdos se tornem indisponíveis, mesmo quando o usuário esta disposto a pagar por ele;
- “Grátis”.
Uma estranha barganha
Do lado dos produtores, a coisa é bem mais complexa. Falei lá em cima sobre o modelo de broadcasting, onde a fragmentação de audiência era mínima. Em qualquer momento que uma TV estivesse ligada, a audiência estaria focada em 1 dos 7 canais possíveis no Brasil. A rigor sabemos que a conta é bem mais modesta do que isso. Grande parte da audiência estaria focada em provavelmente 1 de 3 canais.
E naquele meu primeiro computador? A única opção disponível para meu velho 386 era o Windows. Os Macs eram seres a rigor completamente diferentes, de dentro pra fora. Usavam componentes completamente alienígenas ao universo dos PCs (e essa diferença ajudou a restringi-los a nichos por muito tempo).
As opções eram poucas. A expansão dos fenômenos culturais era praticamente irrestrita. Ouso fazer perguntas como “Seriam os Beatles os Beatles em tempos de cauda longa, onde há imensa dispersão da audiência?” ou “O Windows teria alcançado o virtual monopólio nos desktops e consequentemente treinado milhões de usuários em seu sistema se não fosse a pirataria? Qual seria o custo para a indústria em treinar por sua conta milhares ou milhões de usuários para que se adaptassem aos seus sistemas corporativos?”.
Veja, a pergunta sobre os Beatles e sobre o Windows pertencem a sistemas diferentes, cultural e tecnológico. Mas ambas são sobre fenômenos onde a “massa crítica” foi formada graças à popularização. A primeira por um modelo de broadcasting, a segunda por um modelo que chamarei de “piratocasting”.
“De alguma forma os downloads nos ajudaram, certamente, em termos de consciência de marca… (A pirataria) levou muitas pessoas que de outra maneira não teriam assistido a série a assisti-la” – Vince Gilligan, sobre a pirataria de Breaking Bad
Ao invés de pensar no Windows, podemos comparar os Beatles com outro fenômeno cultural, esse cuja manifestação ainda ecoa: a série Breaking Bad.
O próprio criador, Vince Gilligan, identificou a importancia da pirataria na popularização do seriado: “De alguma forma os downloads nos ajudaram, certamente, em termos de consciência de marca” e “(A pirataria) levou muitas pessoas que de outra maneira não teriam assistido a série a assisti-la”. Claro que ele completou: “O lado negativo é que teríamos ganhado mais dinheiro se todos esses downloads tivessem sido legais.”
A questão que coloco é que nos dias de hoje essa última premissa é inconsistente. Não haveria, de saida, forma das pessoas baixarem legalmente a série, especialmente a última temporada. Não há nenhum canal de distribuição universal de conteúdo que abarque o público compreendido pelos downloads ilegais, mesmo que as pessoas que baixaram ilegalmente a quisessem baixar legalmente. Breaking Bad em especial foi tremendamente promovida pelo sucesso que fez no Netflix, a mais competente plataforma (legal) de distribuição de conteúdo audio-visual.
O “piratocasting” é um modelo, ainda que indesejado, de promoção cultural digital. É o subproduto de um descompasso sensível entre a industria cultural tradicional e a nova e poderosa revolução digital.
Descompasso temporário?
É inegável que o descompasso já foi muito maior. Hoje mercados como o Brasil já contam com uma variedade de plataformas onde é possível ouvir música ou assistir sob demanda filmes e séries. O Netflix é um dos maiores expoentes desse movimento. Mais do que isso, passa a ser uma importante plataforma de produção de conteúdo exclusivo de qualidade com séries como House of Cards e Orange is the New Black.
Mesmo a indústria do software (que abordei en passant) procura modelos alternativos. A Creative Cloud da Adobe é um exemplo. As suites de software online do Google e Microsoft são outro. A venda de Apps por Apple, Google e Microsoft outro. Mesmo sistemas operacionais estão se tornando grátis. Os novos sistemas OSX da Apple são distribuídos de “graça” (claro, elas estão atreladas ao hardware). As distribuições Linux hoje são extremamente competentes e amigáveis.
Minha tese principal (ufa) é de que a pirataria é um fenômeno potencialmente transitório, que pode ser solucionada criando ou adaptando modelos de distribuição existentes. Mas para isso, existem alguns problemas gigantescos a serem solucionados:
- Legislação: Como tornar mais simples o licenciamento de direitos autorais em cada país ou território ou o problema do “conteúdo não disponivel no seu território”?
- Fragmentação: é ótimo poder assinar o Netflix e ter todo acervo de filmes a sua disposição. Mas na prática isso não acontece. O conteúdo é fragmentado de forma que para ter direito de assistir a qualquer filme é preciso assinar o Netflix, Hulu Plus, HBO Go, iTunes etc etc etc (apenas Netflix e iTunes estão disponíveis no Brasil). O mesmo vale para músicas.
- Velhas midias x novas midias: Pouco tempo atrás surgiu uma noticia interessante. A Netflix tentou licenciar conteúdo da Globo para torna-lo acessível em seu catálogo. Segundo o executivo Ted Sarandos, a Globo não quis abrir negociação. Nos EUA, existe um caso também curioso. A HBO tem sua própria rede de distribuição digital, a HBO Go, mas o acesso à rede é restrito aos assinantes do canal convencional via cabo. Aparentemente a HBO “tradicional” teme ser canibalizada pela sua própria filial digital.
- Modelos de uso ou posse de conteúdo: a lógica cultural da minha geração é de que se você compra, você é dono. Essa lógica se alterou completamente no campo do software. Se você compra o Windows (só para ficar no exemplo que já usei) você não é dono do programa, mas sim de uma licença de uso dele. Modelos de distribuição digitais seguem essa tendência. Você não é dono dos seus livros na Amazon. Tem apenas uma “licença de uso” deles. Num caso particularmente emblemático, versões de 1984 de George Orwell foram remotamente removidas de dispositivos Kindle. O “Ministério da Verdade”, citado no mesmo livro não precisaria se preocupar com alterações em arquivos e jornais de papel. Bastaria sobreescrever os fatos digital e remotemente.
Como qualquer fenômeno cultural realmente importante, é muito difícil imaginar os rumos do piratocasting. Talvez ele seja vencido por uma combinação de oferta, variedade, DRM agressivo e comodidade.
Temo um dia suspirar pensando no tempo onde o conteúdo na internet era verdadeiramente livre, e corria por vias extra-oficiais. Me parece que a vitória definitiva dos direitos autorais (principalmente nos modelos atuais) é uma ameaça notável à liberdade de expressão, reinterpretação e resistência a visões totalitárias.
PS – Parece que a pirataria não está matando a industria de conteúdo, veja você…